Raimunda nunca desafina.
Ela faz a terceira voz das Cantadeiras do Souza, grupo também formado por suas
irmãs Marly, Marlene e Djanira, sua filha Elisabeth e a cunhada, Ercy, em
Souza, distrito de Jequitibá. Com 83 anos, diz que a memória anda falhando, mas
prova o contrário todo tempo. São muitas ladainhas, cantigas de roda, novenas,
pastoris e outros gêneros entoados pelas seis mulheres, que desde crianças já
acompanhavam o pai, o falecido mestre Seu Juvercino Gonçalves dos Santos, nas
procissões e em outras tradições do catolicismo popular. “Antigamente, toda
festa tinha roda, cantoria. Era a oportunidade de cantar, dançar e segurar na
mão dos rapazes”, relembra Dona Raimunda. “É, menina, antes não podia namorar
que nem hoje, não”. Ela mesma só foi pegar na mão de seu grande amor, Jaime
Souza Carvalho, pouco antes do casamento. Lembra dele com saudade. “Era homem
trabalhador, honesto, marido bom demais. Mas Deus levou faz treze anos, fazer o
quê, né? Todo mundo fala pra eu arrumar um namorado, mas só se for igual a ele.
Não vou achar, não".
As seis cantadeiras nunca
fizeram aula de canto. Apresentam timbres e afinações sofisticados, uma
impressionante harmonização de vozes. No Folclorata, quem teve a honra de
realizar a vivência com elas foi a cantora mineira Déa Trancoso. “As vozes são
tão orgânicas que parece que elas frequentam a escola de canto há 200 anos”, se
impressiona Déa. “A Raimunda tem uma voz raríssima, é a mais sofisticada das
seis”. A cantora conta um episódio que presenciou e a marcou durante a
experiência. Em uma entrevista para a televisão, Dona Raimunda foi cantar e
colocou a mão no diafragma. “Ela fez isso para não desafinar, para buscar o
agudo da voz e segurar a nota”, diz. “Elas não dão nome às técnicas, mas sabem.
O ofício de cantar é uma sapiência delas. Têm consciência de coisas que levei
anos para assimilar”.
As Cantadeiras do Souza
oficializaram o grupo em 1992, quando conheceram o cantador-pesquisador da
cultura popular brasileira, Eliezer Teixeira. Seu Juvercino acompanhou as seis
até o fim da vida. Aos 97 anos, viajou a São Paulo para se apresentar com elas
em um show, junto com o grupo A Barca, outro grande parceiro. “Meu pai cantou
na Folia até no mês em que morreu, aos 99 anos”, conta Dona Raimunda. “Então a
senhora tem muitos anos de cantoria pela frente, hein?”, constato. “De dançar e
de ir em festa eu não canso. E não gosto de ficar parada: bordo, faço tricô,
crochê, doce de leite. Racho lenha, faço palheiro, lavo roupa”, ouço como
resposta. Com um abraço, eu e Dona Raimunda encerramos a prosa e ela me
garante: vai chegar aos 120 anos cantando. Sem desafinar.
As trocas no Folclorata
Sobre a experiência da
vivência com as Cantadeiras do Souza, Déa Trancoso tem muito a dizer. Mas
principalmente a sentir. Cantora e compositora, mostra influências muito fortes
de violeiros, foliões e congadeiros do Vale do Jequitinhonha, onde nasceu e
cresceu, filha de seresteiros. Sua voz transporta qualquer um ao sertão, faz
conhecer a cultura popular brasileira por meio de ritmos como samba de caboclo
e de roda, maracatu, congo dobrado, coco e catimbó. A rotina com a família de
Souza a trouxe de volta a esse sertão, à simplicidade do dia a dia, às noites
de cantoria. Impressionou-se com Jequitibá, tão perto de Belo Horizonte, mas
tão distinta da capital. “Aqui o povo é plantado na terra. Tentei trazer a elas
um pouco de metafísica, com exercícios que as fizeram imaginar a Terra como um
ioiô, lembrar que estamos suspensos no ar”, conta Déa. “E também quis mostrar
como o abraço, o afeto, que é tão cotidiano para elas, é cura, tem poder. Elas
podem se valer muito disso”.
Foto: Leonil Junior |
Foto: Leonil Junior |
Na apresentação que
fizeram juntas no sábado, 12 de setembro, Déa propôs dispensarem os microfones
e o palco, mesmo com o barulho do público. Cantaram unidas, com palmas, expressão corporal e usando
a potência das vozes em coro. “Com essa vivência do Folclorata aprendi a usar vozes
às quais não costumo recorrer. Que não são nada fáceis. Meu ouvido ficou pegado
por essa riqueza que as cantadeiras apresentam”.
O encerramento ficou por
conta de Marly, que fez questão de apresentar As Pastorinhas no palco para fechar
o show. “Por isso o Vozes de Mestres é raro”, declara Déa. “Ele cria
plataformas para que tudo aconteça com mais profundidade, permite que os
mestres se mostrem mais. Porque tem muita coisa acontecendo no espaço interno,
que muitos projetos parecidos não conseguem alcançar. Escolhendo o desfecho,
Marly revisitou seus desejos, deu espaço a eles”.
linda matéria!!! parabéns Ana!!! Parabéns Vozes de Mestres!!!
ResponderExcluirAna, parabéns pela sensibilidade. Privilégio de poucos escrever sobre o que os olhos da alma vêem.
ResponderExcluirisso! achei fenomenal essa matéria da ana!!! parabéns, mais uma vez.
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